terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O Corvo / Allan Poe por Fernando Pessoa

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lenta e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.

É só isto, e nada mais."

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio Dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu queria a madrugada, toda a noite aos livros dada
Pra esquecer (em vão!) o amado, hoje entre Hostes Celestiais - Esse cujo nome sabem as Hostes Celestiais,

Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer fria e frouxa, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca dantes tais!
Mas, a mim mesma infundindo força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.

É só isto, e nada mais.

E, mais forte num instante, já nem tarda ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.

Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdida receando,
Dúbia e tais sonhos sonhando que ninguém os sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dele, e o eco disse aos meus ais.

"Isso só e nada mais."

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo, mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.

o vento, e nada mais."

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,

Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."

Disse o corvo - "Nunca mais".

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre meus umbrais,

Com o nome, "Nunca mais".

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz, nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdida, murmurei lenta; "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram! Amanhã também tu te vais".

Disse o corvo; "Nunca mais".


A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
É o bordão de desesperança de seu canto cheio de ais

Era este "Nunca mais".


Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto em meus umbrais;
E, enterrada na cadeira, pensei de muita maneira
Que queria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,

Com aquele "Nunca mais".

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
A ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ele, entre as sombras desiguais;

Reclinar-se-ia nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldita!" - a mim disse - "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; vale-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome daquele que não esqueces, e que faz esses teus ais!"

Disse minha alma - "Nunca mais".


"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e a este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!

Disse o corvo: "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem, ambos, somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verei esse hoje perdido entre Hostes Celestiais,
Esse cujo nome somente sabem as Hostes Celestiais!"

Disse o corvo: "Nunca mais".

"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Retorna à noite e à tempestade! Retorna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Retira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"

Disse o corvo: "Nunca mais".

E o Corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda,
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão, mais e mais.
E a minha alma dessa sombra, que me assombra, mais e mais,

Libertar-se-á... nunca mais!




































Edgar Allan Poe
Por Fernando Pessoa
Adaptado

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